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Luiz Victor Aragon

Rainha Vermelha



O homem andou por corredores escuros e sujos, guiado por dois guardas visivelmente cansados do trabalho, até uma porta de ferro completamente lacrada. Um dos guardas tirou um molho de chaves do bolso e abriu a porta. A cela era bem pequena e escura, a única iluminação vinha de uma janelinha lá em cima.

Havia somente uma cama velha e mofada, e sobre ela jazia uma jovem mulher. Seus longos cabelos negros estavam desgrenhados, sua pele branca estava suja e suas roupas não passavam de farrapos, mas ainda assim era possível enxergar a beleza que ela possuía.

— Mademoiselle Swan! Também conhecida como Rainha Vermelha — exclamou o homem ao cruzar a porta.

A mulher se sentou encostada na parede, olhando com curiosidade para o visitante.

— É assim que sou conhecida — respondeu ironicamente. — E quem é esse que esbraveja tão energeticamente meu nome?

— Sou Oliver Crow, repórter do The News. Eu gostaria de entrevistar a senhorita, se não for um incômodo.

— Não que eu tenha muito mais coisa pra fazer aqui, mas por que eu deveria perder meu tempo respondendo perguntas de um repórter qualquer?

— Bem... A senhorita será executada amanhã.

— Estou bem ciente disso, senhor.

— Não gostaria que as pessoas escutassem suas últimas palavras? Que elas conhecessem quem foi a Rainha Vermelha e que as histórias da grande pirata que aterrorizou os sete mares fossem contadas por séculos? Eu estou lhe oferecendo essa oportunidade.

A prisioneira contemplou o teto, pensativa, por alguns segundos, antes de voltar seu olhar para o repórter e sorrir.

— Tudo bem. Lhe concederei essa entrevista. Mas será só nós dois. Sem guardas para ouvir coisas que não devem.

Um largo sorriso surgiu no rosto de Oliver. Ele fez sinal para que o guarda os deixasse a sós.

— Senhor, não posso garantir sua segurança se ficar sozinho com ela — falou o guarda.

— Não se preocupe, rapaz. Pode ir.

O guarda deu de ombros e deixou a sala. Oliver pegou um bloco de notas e uma caneta do bolso e começou a rabiscar algumas coisas.

— Muito bem, muito bem. Por onde começar? Quando você se tornou uma pirata?

— Há uns oito anos, mais ou menos. Eu tinha dezoito na época.

— O que você fazia antes de entrar nessa vida?

Swan levou um tempo ponderando antes de responder.

— Meu pai era dono do maior estaleiro de minha cidade, e minha mãe era uma lady. O que eu fazia antes? Eu vivia uma vida de luxo e mordomias. Eu podia ter qualquer vestido, qualquer jóia, qualquer coisa que eu quisesse. Meus criados faziam tudo por mim, eu nunca precisei me preocupar com nada.

Oliver olhou intrigado para Swan.

— Mas então... Por que?

— Por que abandonei uma vida de luxo para viver no mar saqueando e matando os pobres coitados que tinham o azar de cruzar com o Navegante Sangrento? Simples. Eu tinha quase tudo, mas não tinha liberdade. Eu era uma boneca com a qual meus pais brincavam. Vocês acham que nós só queremos conseguir riquezas de maneira fácil, que somos somente ladrões e assassinos desalmados. Vocês não entendem o que é a verdadeira liberdade. Quer saber por que me tornei uma pirata? Pois eu vou lhe contar.

"Quando eu era criança, eu tinha o hábito de sair escondida de casa e brincar na rua com crianças normais. Foi assim que conheci Will. Ele era filho de um sapateiro, e passava por apertos que eu não era capaz de compreender. Mas, mesmo com nossas diferenças, nos tornamos grandes amigos. E, com o tempo, acabamos nos apaixonando. A minha vida podia parecer perfeita para aqueles que viam de fora, mas na verdade era um inferno. Os únicos momentos bons que eu possuía eram aqueles que eu passava na rua com Will. Aqueles momentos eram divinos, aquela era a vida que eu queria. Era a vida que nós merecíamos. Mas é claro que as coisas não seriam assim tão fáceis.

Um dia meus pais descobriram, culpa de um criado em quem achei que podia confiar. Não, na verdade a culpa foi minha em confiar em alguém que não entendia o mundo que eu escolhi. Pois bem, eu passei a ser vigiada a todo momento, nas poucas vezes que saía de casa eu era acompanhada, e meus pais deram um jeito de se livrar de Will. Eles garantiram ao pai dele uma oportunidade de expandir seu negócio e eles tiveram que se mudar para outra cidade. Por anos eu fui mantida prisioneira naquele inferno.

Eu tinha quase dezoito quando fiquei noiva de um homem que mal conhecia, mas que traria grandes benefícios para minha família. Eu cheguei a sonhar que o casamento pelo menos me livraria daquela prisão, mas na verdade eu só estaria trocando um dono por outro. Faltava meses para o casamento, eu conseguia visualizar perfeitamente meu futuro de sofrimento, quando algo aconteceu. A cidade foi recebida por piratas, e alguns deles vieram até minha casa. Eles entraram escondidos e me acharam. O capitão estava atrás de mim querendo conversar. Imagine a minha surpresa ao descobrir que o capitão daqueles piratas era na verdade Will.

Ele me levou até um desfiladeiro no qual costumávamos passar horas apreciando a vastidão do mar. Ele me contou tudo o que aconteceu com ele, como ele se tornou marinheiro, como se cansou daquela vida de servidão e resolveu abandonar tudo para se tornar um pirata e cruzar livremente os mares. E como ele ansiava por ter-me ao seu lado em suas aventuras. Meu coração vibrava ao ouvir aquilo, ao imaginar ser livre pra ser quem eu era, em viver essas aventuras junto do meu grande amor.

Tendo total certeza do que meu coração queria, eu olhei fixamente nos olhos de Wil,l e disse não. Eu não iria com ele. A prisão se tornou tão familiar à mim que eu não conseguia conceber uma vida longe dela. Era assustador demais pensar nisso. Lá estava o único homem que já amei verdadeiramente me oferecendo a liberdade que eu sempre quis e eu era simplesmente medrosa demais pra aceitá-la, pra deixar meu sofrimento para trás e buscar a felicidade. Ele foi embora, decepcionado eu imagino, e eu voltei para a amarga realidade que me esperava em casa. Acho que nunca chorei tanto como naquela noite, por ter aceitado que aquela seria para sempre minha vida."

— Mas não foi! — interrompeu o repórter. — Se não, não estaríamos tendo essa conversa agora.

— Muito perspicaz de sua parte, senhor — respondeu sarcasticamente a pirata. — Se permitir que eu continue minha narrativa, talvez você compreenda o que aconteceu.

— Claro, me desculpe. Pode continuar.

— Como eu dizia... Os meses passaram e chegou o dia do meu casamento. Naquele dia, meu pai estava lendo o jornal e comentou sobre um pirata que havia sido executado. Eu fiquei curiosa e peguei o jornal para ler. O pirata que havia sido executado era Will. O mesmo Will que meses antes me convidara pra viver aventuras ao seu lado havia sido capturado e executado. Ao ler aquilo, eu não senti tristeza, raiva, decepção... Eu senti um vazio enorme surgir dentro de mim. Eu senti que estava completamente sozinha naquele mundo terrível.

"Então a ficha caiu pra mim. Se eu tivesse aceitado ir com ele meses atrás, eu teria acabado morta também. Mas teria valido a pena. Teria sido melhor morrer livre do que viver por décadas naquele estado deplorável em que eu estava. Naquele momento eu rasguei meu vestido e fugi de casa. Corri como nunca pela cidade, até deixá-la para trás. Estava chovendo muito, e eu corri pela estrada em meio a chuva. Eu sentia os pingos atingindo meu rosto e era uma sensação maravilhosa. A cada passo que eu dava eu ficava mais leve. Toda a frustração que existia dentro de mim, toda a dor, todo o medo, toda a insegurança iam desaparecendo, da mesma forma que minhas lágrimas desapareciam na chuva. Quando minhas pernas já não eram mais capazes de me sustentar eu caí de joelhos na lama e encarei o sol que começava a brilhar por entre as nuvens. Pela primeira vez em muitos anos, eu estava sorrindo de verdade."

Swan fechou os olhos e se recostou na parede, aproveitando o sentimento que aquelas lembranças traziam.

— Por favor, senhorita, continue — pediu Oliver.

A pirata sorriu e abriu novamente os olhos, fitando intensamente o repórter.

— Depois disso eu consegui chegar à cidade vizinha, onde arranjei um trabalho no porto. Eu aprendi tudo o que podia sobre o mar, sobre navios, mas principalmente como sobreviver em um mundo que queria te devorar vivo. Consegui me juntar à uma tripulação me passando por homem, e depois de um tempo organizei um motim e tomei o navio para mim. Nos anos que passaram eu e minha tripulação aterrorizamos os mares, saqueamos e matamos sem piedade. Todos se aterrorizavam com a possibilidade de cruzarem com o Navegante Sangrento, todos tremiam ao ouvir o nome Rainha Vermelha. Nós conseguimos fama e fortuna. Conquistávamos qualquer coisa que quiséssemos. Éramos verdadeiramente livres.

— Mas no fim vocês foram capturados, e agora você está presa e prestes a deixar esse mundo. Não se arrepende do caminho que seguiu?

— Nem por um segundo. Sabe, desde que deixei minha família eu fui ferida de formas que você nem imagina, eu passei por mais momentos desesperadores do que posso contar, mas ainda assim nada se compara ao que passei naquela casa. Toda a dor que senti até agora é compensada por cada suspiro de liberdade que eu dou. Se a minha vida realmente acabasse amanhã, ainda assim teria valido a pena tudo o que eu fiz.

— Como assim "se acabasse"? — se sobressaltou Oliver. — Você será executada amanhã. Tudo estará acabado.

O som da gargalhada de Swan preencheu o quarto, deixando Oliver desconfortável.

— Você acha que eu deixaria esse mundo tão facilmente assim — falou a pirata após se recompor. — Escreva em sua matéria, senhor Crow, o mundo ainda escutará muito o nome Rainha Vermelha.

Oliver olhou assombrado para a prisioneira e anotou mais algumas coisas em seu caderninho.

— Muito bem, senhorita, acho que isso é tudo.

Ele guardou suas coisas, acenou para a pirata e deixou apressado o quarto. Swan estava novamente sozinha. Ela se agachou no chão e tirou do pé da cama uma faca feita de pedra da parede. Ela se sentou novamente, olhando fixamente para a faca, e sorriu.


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