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O assassinato EG



Eu tenho pensado esses dias no que a minha vida se tornou. Aos meus 86 anos, parece que não sobrou mais nada pra mim aqui. Minha mulher e meus filhos se foram há muito tempo, assim como todas as minhas conquistas e tudo o que era eu. Sinto que em breve também terei partido para sempre. Mas eu não queria ir sabendo que tudo o que deixei pra trás foi um vazio. Eu queria deixar algo para você, mas não me restou nada, pelo menos nada material.

Enquanto olhava pela janela a grande metrópole em que vivemos, cheia de máquinas, carros voando e propagandas enormes, eu me lembrei de um tempo em que as coisas pareciam mais simples. Quando a Máquina Tesla, responsável por fornecer eletricidade gratuita para todos, havia acabado de ser instalada na cidade. Carros elétricos, robôs operários, armas de choque, tudo isso era novidade por aqui. A maior delas era os RECT, esses cadáveres reanimados por eletricidade pra trabalhar nas fábricas. Esse tempo ficou marcado em minha alma pelas grandes histórias que vivi no meu trabalho como jornalista. Relembrando cada uma, percebo que em breve elas estarão perdidas para sempre. Isso seria uma grande lástima, então decidi confiar a você essas memórias. Posso não ter mais nada material para te deixar, mas possuo em minhas histórias uma grande herança que tenho certeza de que você fará bom proveito.

Minhas histórias começam cerca de 60 anos atrás, quando era um jovem de 26 anos recém chegado no Rio e que tivera a sorte de conseguir emprego num dos maiores jornais da cidade. Minha ânsia em ter meu nome reconhecido me levou a ter contato com um dos crimes mais repercutidos da época, aquele que ficou conhecido nos jornais como “O assassinato EG”.


5 de março de 1926


Essa história tem início às 14 horas. Eu havia acabado de almoçar no Esquimó, um pequeno restaurante há três quadras do jornal, lugar perfeito para alguém ainda em início de carreira como eu, e estava me dirigindo de volta ao trabalho quando reparei numa turba amontoada em um beco no caminho. Minha curiosidade me levou a atravessar aquela multidão e encontrar uma cena de crime que a polícia tentava interditar. Era possível ver um corpo encostado na parede, sua cabeça estava torcida em um ângulo desagradável de se ver.

Eu abordei o policial mais próximo, mostrando minha credencial de repórter. A contragosto, ele deixou que eu passasse. Me aproximei do cadáver o máximo possível, não havia nenhum ferimento visível além do óbvio, seus cabelos ruivos estavam bagunçados e havia uma par de óculos caídos perto do corpo, ainda intactos, suas roupas finas indicavam que devia ser alguém de importância na sociedade. O que mais chamava atenção, além do pescoço torcido, era um estranho símbolo que parecia ter sido marcado com ferro em brasa no seu pescoço. O símbolo continha as iniciais EG.

Tirei algumas fotos da vítima e me dirigi ao guarda, questionando-o sobre o ocorrido.

— Tem uns 20 minutos que aquela senhora nos telefonou relatando o crime. Identificamos a vítima como José Alento, mas não temos muito mais informações além disso. Parece haver pouco tempo que ele foi assassinado, ainda estamos esperando o perito, mas posso lhe assegurar que o sujeito que fez isso tinha que ser muito forte. Ninguém parece ter visto algo, ainda estamos procurando evidências do que aconteceu. Pelo que pudemos constatar, nada foi roubado, não há nada indicando o motivo de matarem esse homem.

Sem conseguir extrair mais nada de útil do policial, me dirigi à senhora apontada por ele. Apesar dos cabelos grisalhos, transparecia uma força juvenil. Estava abalada, é claro, mas aceitou me contar o ocorrido.

— Eu estava voltando do centro de caridade onde trabalho e entrei nesse beco por ser um atalho até a minha casa. Eu sei que todos falam sobre o quanto a cidade está perigosa, mas eu sempre passo por aqui e nunca vi nada de ruim acontecendo. Bem, nada até agora… — ela precisou de alguns segundos para se recompor — Assim que entrei no beco me deparei com esse homem caído. Me aproximei achando que ele precisava de ajuda e percebi que na verdade estava morto. Imediatamente corri para o telefone da esquina e chamei a polícia. Fiquei esperando por eles ali mesmo, com medo de voltar para o beco. Não vi mais nada nem tenho ideia do que pode ter acontecido.

Agradeci a senhora e deixei o beco com a cabeça fervilhando de perguntas. Outros repórteres chegavam e atravessavam a multidão querendo descobrir o que aconteceu, mas eu tinha vantagem e precisava me aproveitar disso. Assassinatos eram comuns na cidade, por mais infeliz que isso seja, e mesmo que a vítima fosse alguém da alta sociedade, isso não seria o suficiente para vender jornais. Mas algo me dizia que havia mais por trás daquela história e que valia a pena investir nela, agora percebo que provavelmente era só meu desespero em encontrar algo que fizesse meu nome reconhecido.

Fui até o mesmo telefone público que a senhora havia utilizado e liguei para o jornal avisando que iria demorar um pouco pra chegar porque estava caçando uma história. Corri pelas ruas movimentadas do centro carioca, deixando alguns transeuntes e motoristas irritados, e em cerca de 10 minutos me encontrava na biblioteca da cidade. Depois de 5 minutos tentando fazer o atendente autômato entender o que eu queria, consegui acesso a todos os arquivos que eles possuíam sobre José Alento.

Passando uma hora debruçado sobre pastas, revistas e jornais velhos, descobri que aquele homem era sócio da Electronic Giants, uma grande empresa que despontava no ramo da eletrônica e disputava espaço com as estrangeiras. Diferente de seus dois parceiros, que eram figuras públicas bem conhecidas na alta sociedade, José era um gênio recluso, muito mais preocupado com seu trabalho do que em fazer mídia. A maior parte do público acreditava que Mary Rosa e Daniel Fischer eram os gênios por trás da companhia. Sem família e desconhecido do público, parecia que ninguém lamentaria sua morte. O que teria levado alguém a matar esse pobre coitado?

Com a cabeça cheia de perguntas e poucas respostas, deixei a biblioteca e me dirigi ao prédio do jornal. Mal saí do elevador e já dei de cara com meu chefe, que estava visivelmente irritado com meu atraso. Expliquei toda a situação e o que descobri, não que isso tenha ajudado a acalmar seu temperamento.

— E o que tem demais nisso? É só mais um assassinato, pouco importa que a vítima era alguém de importância. Amanhã todos os jornais sairão com a mesma notícia, eu preciso de algo que venda.

— Eu entendo, senhor, mas tenho certeza que há mais por trás dessa história. Se me deixar investigar eu lhe entregarei uma notícia digna da primeira página.

— Muito bem. Mas é bom eu ter essa notícia até o fim da semana, ou pode se despedir da sua mesa.

Dito isso, ele se dirigiu para seu escritório ainda transtornado, me deixando sozinho em um estado um tanto quanto aflito.

— Não se preocupe, novato. — me virei e vi Lúcia, uma jovem, mas experiente, jornalista, apoiada na porta me observando. Desde que cheguei ela havia sido a única que foi de fato amigável comigo — Todo mundo aqui já escutou isso uma dúzia de vezes, mas até agora ninguém foi mandado embora. E sei que você vai se sair bem na sua investigação.

Agradeci meio sem jeito e me dirigi à mesa, não sem antes me servir de um copo de café. A primeira coisa que fiz foi ligar para a Electronic Giants e agendar uma conversa com os donos para a manhã seguinte. O resto do dia correu tranquilo. O céu já estava negro quando deixei o jornal e caminhei pelas ruas iluminadas da cidade até o meu humilde apartamento. Jantei, escutei o rádio enquanto bebia e fumava charuto, e às dez horas me deitava, ainda inquieto pensando no que o dia seguinte me revelaria.


6 de março de 1926


Levantei cedo nesse dia, peguei um desses bondes público na rua, agora capazes de se locomover por toda cidade em seus trilhos sem a necessidade de estar ligados à fiação elétrica, que encontrava-se inexistente por sinal, e em 20 minutos estava na zona industrial da cidade. No passado aquele seria um antro de poluição, mas como agora a energia elétrica chegava às fábricas pelo ar, vinda da Máquina Tesla, não era mais necessário aquelas chaminés expelindo quantidades absurdas de fumaça. Fui bem recebido na fábrica, onde me conduziram por um local em que RECTs trabalhavam na montagem dos eletrônicos até o escritório dos chefes. Às nove horas em ponto Mary e Daniel sentavam diante de mim para nossa pequena entrevista.

— Obrigado por me receberem. Creio que já tenham sido avisados sobre o triste incidente — comecei falando.

— Sim, a polícia nos comunicou ontem a noite — falou Daniel, com pesar em sua voz.

— Foi muito triste, não estávamos esperando perder nosso José… — Mary continha as lágrimas enquanto falava.

— Eu sinto muito ter que abordar vocês nesse momento, mas eu quero descobrir o que aconteceu. Podem me dizer tudo o que sabem sobre José?

Mary esfregou os olhos e soltou um suspiro antes de começar a falar.

— Claro, tudo bem, nós também queremos saber o que aconteceu. — Mary se ajeitou na cadeira antes de continuar — Eu e José fizemos faculdade juntos, ele sempre se mostrou ser um gênio na eletrônica. Alguns anos atrás eu e Daniel tivemos a ideia de criar essa empresa, eu sendo responsável pelos projetos e ele pela parte administrativa, que é o forte dele, mas estávamos com dificuldades em emplacar nossos produtos. Eu acabei reencontrando José e durante a conversa contei sobre nossa situação, ele me deu algumas ideias e disse que poderia ajudar a executá-las. Eu conversei com Daniel e concordamos que se não aceitássemos iríamos à falência em poucos meses. José se juntou a nós e foi responsável por dar um tom mais criativo ao que produzíamos, algo que fez toda a diferença pra nos destacarmos e crescermos no mercado.

— Se não fosse por ele — interrompeu Daniel —, estaríamos perdidos. Todo o sucesso que temos hoje foi graças ao José.

— Mas vocês dois são as figuras por trás da empresa — comentei —, ninguém sabe do papel de José.

— José era muito dedicado ao seu trabalho — Mary voltou a falar —, dedicado até demais. Ele não saía muito, não se envolvia em eventos ou com a mídia, ao contrário de nós dois. Eu e Daniel acabamos nos tornando a cara da empresa, mas José não parecia se importar muito com isso.

— Entendo… — rabisquei o que diziam em meu caderninho e continuei — Existia algum motivo pra quererem matar José? Alguém que poderia querer o mal dele ou da empresa?

— José era um sujeito muito sozinho — falou Daniel —, ele não tinha nenhuma família próxima, seus pais morreram faz alguns anos, e até onde sabemos ele não tinha amigos. A vida dele era o trabalho. Não posso imaginar o que ele poderia ter feito pra que alguém quisesse seu mal.

A conversa seguiu por mais alguns minutos sem trazer mais nada de interessante. Eu agradeci aos dois e deixei a sala processando tudo o que me disseram e procurando uma resposta. Enquanto era guiado para a saída, um RECT cruzou nosso caminho e eu pude ver, por um segundo, um símbolo marcado em seu pescoço. Chamei a atenção do meu guia e corri até o RECT, segurando-o pelo ombro. O símbolo marcado a ferro em seu pescoço era um “EG” idêntico ao encontrado na vítima.

— O que está fazendo, senhor? — inquiriu-me o guia, me alcançando.

— Que símbolo é esse? — apontei para o pescoço do RECT.

— Há, isso? Bem, às vezes esses RECTs ficam um pouco moles no trabalho, então nós usamos ferro em brasa para incentivá-los. É eficiente.

Meu Deus, aquilo era horrível de se imaginar, mas não era nenhum crime, já que esses homens não possuíam uma consciência que os tornasse indivíduos. Eram só uma mistura de carne morta e metal trazidos à vida pela eletricidade. Mas e se fosse possível que houvesse um resquício de consciência neles e que um sentimento de raiva e vingança tivesse sido trazido à tona pelo uso desse castigo?

— Há quanto tempo vocês utilizam esses RECTs?

— Já faz uns dois anos que substituímos quase toda a mão de obra humana por RECTs. Eles são mais eficientes nesses trabalhos manuais na linha de produção, não se cansam, requerem poucas horas de sono e alimentação barata.

— Onde eles ficam quando não estão trabalhando?

— Nós os deixamos no depósito, em um espaço reservado para eles dormirem.

— Não é possível que eles fujam de lá?

O sujeito soltou uma longa gargalhada antes de continuar.

— Eles são só máquinas sem vontade nenhuma, só fazem o que nós mandamos fazer. Nenhum deles fugiria por vontade própria.

— Então nunca aconteceu de algum deles sumir?

— Na verdade, tivemos um roubo semana passado. Levaram algumas coisas do estoque, alguns materiais e também um RECT. Chamamos a polícia, mas eles ainda não encontraram nada.

Agradeci pelas informações e deixei a fábrica. Eu tinha uma ideia do que poderia ter acontecido, agora precisava comprovar ela. Pra isso precisava primeiro conhecer melhor esses RECTs e ter certeza de que minha hipótese era plausível, de que não estaria perseguindo um fantasma. Então, após almoçar, me dirigi até a sede da RECT Company da cidade, no centro.

Esperei sentado em um sofá de couro, numa salinha com decoração bem luxuosa junto de duas figuras que se vestiam como cidadãos da alta sociedade. Peguei um dos panfletos da empresa para foliar, ficando horrorizado com as coisas que ele dizia. Havia uma lista de modelos de RECTs, tal como uma lista de valores que ofereciam por cadáveres frescos e até mesmo um plano em que te pagavam pra que, após a sua morte, pudessem usar seu corpo. Era um absurdo imaginar que seus familiares te privariam de um enterro digno em troca de alguns trocados. E eles não se importavam que seu corpo virasse uma aberração, uma máquina a serviço dos outros?! As descobertas de Edison e Tesla trouxeram muitas maravilhas ao mundo, mas também trouxeram atrocidades como os RECTs.

Uma voz me tirou de meus devaneios, o meu número estava sendo chamado. Fui até a sala ao lado, sentando em frente de uma mesinha com um atendente. Ele começou a me encher de perguntas sobre o que eu buscava em meu RECT, qual serviço eu tinha em mente pra ele, quais especificações eu desejava, e a falar de seus melhores modelos. Eu o interrompi e falei que estava interessado em saber sobre o funcionamento deles, em como eles eram feitos.

— Primeiro nós preparamos o corpo, só aceitamos os melhores, restauramos qualquer ferida que ele possua, colocamos algumas próteses se necessário. Para reanimá-lo, colocamos alguns pregos e fios no cérebro, sistema nervoso e em alguns nervos, e então descarregamos uma alta carga de eletricidade através deles. Em 90% dos casos o corpo volta a funcionar. Após alguns dias de treinamento, ele está pronto para ser vendido.

— Ele não possui nenhuma lembrança? Nenhum sentimento, nada? — perguntei.

O atendente balançou a cabeça.

— Sua mente é completamente perdida, nenhuma memória permanece. Um RECT não possui qualquer sentimento, vontade ou consciência. Eles só reagem aos estímulos que recebem, e nós os treinamos para reagirem aos comandos de seus donos. São os trabalhadores perfeitos.

— Seria possível que alguma situação desencadeasse sentimentos em um RECT? Se ele fosse muito maltratado, por exemplo, ele poderia, num rompante de raiva, ferir seu dono?

Apesar da seriedade de minha pergunta, o atendente gargalhou de tal ideia.

— Eu posso te garantir de que isso nunca aconteceria. Nós realizamos muitos e muitos testes com os RECTs e podemos garantir que eles não possuem qualquer traço de vontade ou consciência. Nada faria eles tomarem qualquer atitude que fosse. Os RECT existem somente para trabalhar por nós.

Eu não estava totalmente convencido, mas não parecia adiantar muito insistir no assunto. Eu agradeci e deixei o prédio, mas mesmo prometendo pensar a respeito de adquirir um RECT o atendente pareceu ficar com raiva por ter perdido seu tempo comigo.

Eu já estava em casa, com um copo de whiskey em uma mão e um charuto na outra, escutando meu rádio e revirando essa história na minha cabeça, quando me veio uma ideia. Um RECT havia de fato sumido da fábrica. Mesmo que tivesse sido um roubo, havia alguma coisa estranha nisso. Talvez eu encontrasse alguma pista na fábrica. Eu não sabia exatamente o que procurar, mas estava inquieto demais pra não fazer nada. Vesti meu sobretudo, peguei minha arma de choque e deixei meu apartamento. O bondinho não operava a essa hora, então peguei um táxi na rua que me levou até a zona industrial.

Já era meia noite quando cheguei na fábrica, ela estava fechada, é claro. Circulei o local, prestando atenção em qualquer coisa suspeita. Havia algumas janelas pelas quais eu podia ver a área de montagem, completamente desligada. Mais a frente, na parte de trás, havia uma porta ao lado de uma caçamba de lixo. A porta estava trancada, mas havia algumas janelas próximas. Eu arrastei a lata de lixo até elas e subi em cima para observar o interior.

Por uma delas eu pude ver um vestiário. Pela seguinte era possível ver uma dezena de beliches onde algumas figuras repousavam, provavelmente RECTs. Na janela seguinte era a mesma coisa. Eu poderia passar por aquela janela e investigar melhor lá dentro, mas não tinha exatamente permissão pra fazer isso. Eu saltei da caçamba de lixo e me apoiei na parede, esfregando os olhos pra afastar o sono.

O que eu estava fazendo? Eles já tinham chamado a polícia, qualquer pista que pudesse haver já tinha sido averiguada por eles. E se a polícia não descobrira nada, o que me fazia pensar que eu descobriria? Continuei circulando a fábrica, ainda sem encontrar nada de útil, quando avistei uma figura se esgueirando por ali.

— Ei! — gritar talvez não fosse a melhor ideia, mas eu não estava tendo exatamente as melhores ideias naquela noite.

A figura se virou pra mim, mas estava encapuzada, e a fraca iluminação me impedia de ver seu rosto. Passado a surpresa, a figura desatou a correr, e eu corri atrás. A persegui por várias ruas até ela desaparecer em uma viela. Parei para recuperar o fôlego e analisar o ambiente. Não havia nenhum sinal daquela figura misteriosa, nem pistas de pra onde ela poderia ter ido. Chutei uma pilha de lixo que havia ali, liberando minha frustração, e caminhei por vários minutos até o bairro vizinho, onde peguei um táxi de volta para casa.

Já eram 3 horas quando me joguei na cama e, após uma noite infrutífera e cansativa, me deixei ser levado pelo sono.


7 de março de 1926


Às seis da manhã eu fui acordado pelo toque do meu telefone. Amaldiçoando quem quer que estivesse ligando, me arrastei pra fora da cama e atendi o maldito aparelho.

— Beco 33, esquina com a rua Machado, agora. Você encontrará suas respostas lá — falou uma voz masculina, desligando logo em seguida.

Devo ter ficado uns cinco minutos segurando o telefone enquanto processava o que acabara de ouvir. Apesar da exaustão, estava deveras intrigado para ignorar aquela mensagem. Mais uma vez vesti meu sobretudo, peguei minha arma de choque e deixei meu apartamento. Quando cheguei no beco, o sol já brilhava sobre a cidade, e pude ver claramente o corpo encostado na parede com uma faca cravada em seu coração, a mão direita ainda segurando-a.

Meu sangue gelou por um momento. Reunindo minhas forças, caminhei até o indivíduo e me agachei para analisá-lo melhor. Os pregos que saiam de sua cabeça indicavam se tratar de um RECT. Virei o seu rosto e observei o código gravado na base de sua nuca, ele continha as indicações da Electronic Giants. Aquele era o RECT desaparecido da empresa. Em seu pescoço era possível encontrar o mesmo símbolo de EG marcado a ferro.

Me dirigi até o telefone público da esquina e chamei a polícia. Em quinze minutos eles apareceram e tomaram conta da situação. Mostrei minha credencial de repórter e contei o que havia acontecido, só omiti a parte de ter recebido uma ligação misteriosa. No lugar disso, disse que tinha ido dar uma caminhada para espairecer a cabeça. Acompanhei todo o processo enquanto o corpo era levado para a delegacia.

Uma rápida inspeção do legista pode constatar que aquele RECT havia se suicidado, já que as digitais contidas na faca eram dele mesmo. Contei sobre minhas suspeitas e eles averiguaram o corpo de José. As impressões encontradas em seu pescoço batiam com as do RECT, e a força necessária para torcer o pescoço dele daquela maneira corroborava a descoberta. Aquele RECT era o assassino de José Alento. A Electronic Giants foi contatada e um representante enviado para averiguar a situação. Ele pôde constatar que aquele era mesmo o RECT sumido. Ele também acrescentou que fora José quem começara a implicar esses castigos físicos, o que o tornava o alvo ideal para um RECT vingativo.

Tudo isso levou a manhã inteira, a qual eu sobrevivi a base do café horrível da delegacia, mas valeu a pena. Já era meio dia quando cheguei em casa. Enquanto comia, redigi em minha velha máquina de escrever a minha primeira grande notícia. Em uma hora já estava com a matéria pronta para ser entregue, mas enquanto relia algo me incomodava. Aquilo tudo estava conveniente demais. Havia tantos furos nessa história, e o atendente da RECT Company tinha garantido que uma situação dessas seria impossível. Eles não deveriam conhecer seu produto? E ainda havia aquele telefonema misterioso. Por mais que eu quisesse ver minha matéria publicada no jornal, eu tinha que tirar essa história a limpo primeiro.

Liguei para o meu chefe e, após ouvir muitos gritos, ganhei mais tempo para escrever a matéria. Primeiro liguei para a central da linha telefônica e pedi que me informassem quem havia me ligado. Descobri que a ligação veio de um telefone público, mas eles não tinham permissão pra me informar qual. Decidi então retornar ao beco onde encontrei o RECT morto. Não havia mais nenhum vestígio do crime lá. A polícia tinha agido bem rápido, mas pra eles era só uma máquina que tinha dado defeito. Eu tinha minhas dúvidas sobre isso.

— Pedro Ortega? — perguntou uma voz às minhas costas, me sobressaltando.

Me virei e me deparei com uma jovem moça, ela usava sobretudo e chapéu. Seu rosto era pálido e possuía uma cicatriz, além de uma expressão bem séria.

— Como me conhece? — perguntei.

— Você é repórter no Jornal da cidade. Estive acompanhando sua investigação.

— Por que?

— Nós temos um interesse em comum. — ela se aproximou de mim e colocou um pedaço de papel dobrado em minha mão — Me encontre nesse endereço às onze horas, sozinho, eu posso ter algo que elucide seu caso.

— Por que não conversamos agora?

— Há algo que você precisa ver.

Abri o papel e conferi o endereço, Rua Temaque, Cidade dos Ratos. Levantei novamente o olhar para a moça, mas ela havia sumido. Corri para fora do beco, sem encontrar nenhum sinal dela. Ora essa! Primeiro recebo uma ligação misteriosa às seis da manhã, e agora isso. O que diabos estava acontecendo?! Respirei fundo e olhei novamente para o papel. Eu não gostava daquilo, mas se queria respostas minha melhor chance era encontrar aquela misteriosa mulher.

A cidade dos ratos era um bairro bem desfavorecido, não havia iluminação elétrica e os trilhos do bondinho não alcançavam aquelas ruas. A falta de segurança e movimentação tornava o lugar perfeito para você ser assaltado, ou pior. Eu andava com uma mão no bolso do sobretudo, segurando minha arma de choque, olhando desconfiado pra qualquer figura que avistasse. Cruzei becos imundos, passei por mendigos que pediam esmola e me xingavam quando me afastava, e cheguei em um prédio decadente, aparentemente abandonado.

Conferi novamente o papel pra ter certeza de que aquele era o endereço e bati na porta. Após alguns minutos de espera, ela foi aberta. Assim que entrei fui agarrado por braços fortes, peguei minha arma de choque mas minha mão foi torcida e não tive escolha se não soltá-la. Meu agressor tirou minha carteira do meu bolso e me soltou após conferir que eu não carregava mais nada. Me virei, arfando, e observei atônito a figura. Era um homem alto e bem musculoso, careca e com pregos saindo da cabeça. Um RECT. Ele conferiu meus documentos e jogou a carteira pra mim, mas guardou a arma.

— Está limpo — gritou.

— Desculpe por isso, mas tínhamos que ter certeza de que estamos seguros. — mais uma vez me assustei com a aparição daquela misteriosa mulher que falava atrás de mim.

— Você sempre chega assim por trás das pessoas? — perguntei em tom sarcástico, ainda recuperando o fôlego. Ela estava sem chapéu dessa vez, e pude ver alguns pregos saindo de sua testa e próximos das orelhas — Você é um RECT!

— Muito observador de sua parte — ela falou. — Por favor, me acompanhe.

Eu olhei de um pro outro, assustado e admirado com o que via, mas segui-os pelo prédio. Subimos um lance de escada e ela abriu a porta de um dos apartamentos pra mim. Havia uma dúzia de figuras lá dentro. Alguns conversavam, uns dormiam, outros comiam. Nenhum deles pareceu dar atenção a mim. Era possível ver em todos eles alguma parte de metal saindo do corpo.

— Todos são…?

— Sim, todos somos RECTs.

Ela fechou a porta e me puxou para outro apartamento, onde nos sentamos em um sofá velho. O grandalhão havia saído, mas deixou minha arma de choque com a moça. Ela sorria pra mim, parecendo se divertir com a minha cara. Eu precisei de um minuto pra organizar minha mente e pensar nas perguntas que queria fazer.

— Quem é você? — perguntei

— Eu adotei o nome de Violeta, mas não lembro qual era meu verdadeiro nome.

— Você é um RECT. Como…?

— Como eu não sou uma máquina sem vontade ou sentimentos? — sua voz parecia ultrajada — Eu não sei ao certo. Após um ano fazendo o mesmo trabalho todo santo dia, eu me cansei e decidi abandonar a fábrica. Vivi um pouco nas ruas, até achar esse lugar. Eu passei a ler os jornais e revistas que eram jogados fora, e a ouvir a conversa das pessoas na rua, assim fui entendendo melhor o mundo em que estava e o que eu era. No começo eu só queria viver em paz, mas depois achei que outros RECTs mereciam ter isso também. Comecei a ir nas fábricas atrás de RECTs como eu, que tivessem algum pensamento próprio, e libertando eles. Transformei esse lugar num refúgio para nós.

— Isso é… fascinante. — sei que tinha defendido a ideia de que um RECT poderia despertar uma consciência, mas não esperava algo tão grande.

Violeta soltou um suspiro antes de continuar.

— Sei que um RECT não deveria ter consciência, mas nós temos, todos aqui. Não somos meras máquinas e não queremos ser tratados assim.

— Certo, eu entendo. Você tem razão, eu prometo tratá-la como eu trataria qualquer pessoa. — Violeta agradeceu e pareceu relaxar — Aquele RECT que se suicidou era um dos seus? Ele cometeu mesmo aquele crime, como uma vingança?

— Seu nome era Armando. Eu o libertei de sua fábrica semana passada, mas não, ele não matou aquele homem. Armando estava comigo naquele dia, não tinha como ele fazer isso. Mas ele desapareceu ontem à tarde. Eu fui até a fábrica à noite, achando que ele poderia ter voltado, mas não encontrei nada, e tive que fugir quando você apareceu.

— Então era você! — acabei me exaltando, mas um dos mistérios estava resolvido.

— Sim, era eu. Foi assim que tomei conhecimento de você. Bem, continuando, essa manhã ele estava morto, e todas as pistas indicavam que ele havia matado aquele homem. Alguém incriminou Armando, e depois o matou de uma forma que parecesse suicídio para que não descobrissem que ele era inocente.

— Então, você me trouxe até aqui e me contou tudo isso porque quer minha ajuda para descobrir quem fez tudo isso?

— É do seu interesse descobrir a verdade sobre o que aconteceu, não?

Eu sorri para ela.

— É mesmo. Você pode contar comigo, Violeta, eu vou descobrir o que aconteceu.

Ela me deu um número pelo qual poderia contatá-la, e me despedi prometendo avisá-la assim que descobrisse algo. Eu tinha uma ideia do que fazer em seguida, mas teria que esperar até de manhã para isso. O grandalhão devolveu minha arma de choque e me acompanhou até o bairro vizinho, onde pude pegar um táxi e voltar para casa. Chegando lá, dormi quase que imediatamente.


8 de março de 1926


Na manhã seguinte liguei para o jornal e falei com Lúcia, ela já era uma jornalista experiente e achei que poderia ter o tipo de contato que eu precisava. Na verdade, ela era a única lá que eu me sentia à vontade para pedir. Expliquei sobre o telefonema misterioso que recebi e perguntei se ela sabia de alguém que poderia invadir a linha telefônica e me dar a informação de que precisava. Ela me passou um número que “oficialmente” ela não possuía, e, portanto, “oficialmente” não foi dela que eu recebi.

Eu liguei para o sujeito, Adalberto, e uma hora depois ele estava mexendo nos fios telefônicos que chegavam no meu prédio. O cara era um gênio da eletrônica e da telecomunicação, mas pelo o que soube mais tarde, sua desilusão com essas empresas fez com que ele escolhesse trabalhar contra elas, ajudando as pessoas que ele considerava serem prejudicadas por esses serviços. Seu serviço era caro, e ele contava com a total discrição de seus clientes, mas valia a pena. Ele me entregou a localização do telefone público de onde veio aquela ligação e eu corri para lá.

O telefone estava no outro lado do bairro, em um local meio discreto. Não havia nenhuma pista nele de quem poderia tê-lo usado. Olhando ao redor, reparei num morador de rua sentado num beco próximo. Fui até ele e perguntei se ele viu alguém usar o telefone na manhã anterior. Ele resmungou algo pra mim, mas depois que lhe ofereci uma boa quantia ele falou que tinha visto um homem de casaco preto e chapéu usando o telefone bem cedo e depois passando por ele e seguindo pelo beco.

Segui o mesmo caminho e saí em uma rua mais movimentada. Andando um pouco encontrei outros moradores de rua que também me deram informação em troca de dinheiro. Eles me indicaram o caminho pelo qual viram o sujeito seguir. Eu fui atrás até chegar numa rua com alguns estabelecimentos além de residências. Fui de loja em loja perguntando se alguém tinha visto alguma coisa, mas a maior parte estava fechada na hora e os outros disseram não ver terem visto nada. Até que cheguei numa padaria que abria naquele horário. Em troca dos meus últimos centavos, o dono me contou o que viu.

Às seis e pouca, quando estava abrindo as portas e arrumando tudo, ele viu dois sujeitos conversando na esquina. Um usava sobretudo e o outro um casaco preto e chapéu, como eu descrevi, pareciam estar tentando evitar chamar atenção. O homem de sobretudo entregou um envelope para o de casaco, e os dois seguiram caminhos diferentes. Uma meia hora depois, o homem de casaco havia entrado na padaria pra tomar café da manhã, ele estava sem chapéu dessa vez e o padeiro o reconheceu como Rodolfo, um desempregado conhecido na região. Apesar de ser cliente na padaria, ele não sabia muito sobre o sujeito.

Agradeci e saí pela rua perguntando pelo Rodolfo, até que alguém soube me informar onde ele morava. Fui até lá e observei o local. Era um prédio velho de uns 4 andares, do tipo que ainda não possuía elevador. Não era muito diferente de onde eu morava, na verdade. Havia alguém varrendo a entrada e fui falar com ele. O sujeito me confirmou que era ali mesmo que Rodolfo morava, mas que ele havia saído. Fui até um telefone público e liguei para Violeta, falei o que descobri e pedi que me encontrasse ali.

Eu estava comendo no café em frente quando ela apareceu. Acenei pela janela e ela se juntou a mim, parecendo desconfortável com o ambiente. Ela usava o mesmo chapéu de antes, que escondia suas partes metálicas.

— Então, qual é o plano? — ela perguntou, tensa.

— Por que está nervosa?

— Olha a quantidade de pessoas em volta, não quero que suspeitem de mim. Vamos acabar logo com isso, por favor.

— Tudo bem. O prédio dele é ali do outro lado, e ele não está em casa. Eu pensei em aproveitar pra entrar e procurar qualquer coisa que nos diga o que aconteceu.

— Parece bom. Vamos. — ela estava mesmo apressada.

Deixamos o café, cruzamos a rua e entramos no prédio, tentando não chamar atenção. Dei uma olhada nas correspondências e descobri qual era o apartamento que procurávamos. Subimos até o terceiro andar, tomamos certeza de que não havia ninguém por ali e tentamos abrir a porta. Estava trancada, é claro, mas Violeta forçou a fechadura e, após alguns segundos de um nítido esforço, abriu a porta. Olhei pasmo enquanto ela atravessava a porta como se aquilo não fosse nada demais. Recuperado do espanto, me juntei a ela e começamos a vasculhar o apartamento.

O lugar era pequeno e sujo, e não havia muita coisa para se olhar ali. Encontramos alguns documentos, fichas de apostas, um bilhete de loteria, várias garrafas vazias e uma arma de choque numa gaveta em seu quarto, o que me preocupou um pouco porque aquele não parecia ser o tipo de cara que possuiria uma licença de porte. Fui vasculhar as lixeiras e encontrei restos de papel queimado em uma delas. Consegui pegar o nome de José Alento, alguns horários e endereços, mas a maior parte estava irreconhecível, não dava pra tirar nada de útil deles. Voltei a ajudar Violeta na busca, cada vez mais desanimado, mas algo me faria recobrar meu entusiasmo.

Vasculhando seu armário, descobri um fundo falso em uma gaveta, de onde tirei uma caixa. Dentro dela havia um envelope cheio de dinheiro e uma luva elétrica. Essa luva funcionava a base de uma bateria localizada em seu pulso, ela fornecia energia que permitia ao usuário aplicar uma força sobre-humana, o suficiente para torcer o pescoço de um homem com facilidade. Eu a analisei na minha mão, tentando descobrir de onde vinha, mas o nome do fabricante estava riscado. O que eu podia dizer com certeza é que aquele tipo de equipamento era vendido pra indústrias ou para o exército, seria caro demais para que alguém como Rodolfo possuísse.

— Ah! Eu já vi isso — exclamou Violeta. — Quando tirei Armando da fábrica, eu vi um conjunto de luvas como essa esperando pra serem encaixotadas.

Eu olhei pra ela, estarrecido. Então a arma usada para matar o sócio da Electronic Giants pertencia à própria empresa. O que nós descobrimos poderia incriminar Rodolfo e seria o suficiente para a polícia reabrir a investigação. Mas ainda precisava descobrir algo que ligasse a Electronic Giants ao crime, e o motivo pra quererem a morte de José.

— Precisamos descobrir o que Rodolfo sabe. Vamos esperar ele chegar e interrogá-lo, depois pensamos no que fazer.

Violeta concordou e ficamos escondidos perto da entrada. Quase uma hora depois escutamos alguém mexendo na porta e resmungando alguma coisa sobre o trinco quebrado. Rodolfo entrou e foi recebido com um murro de Violeta. Ele desmaiou antes que pudesse entender o que estava acontecendo. O colocamos em uma cadeira e usamos o lençol de sua cama para prender suas mãos e pés. Depois batemos em seu rosto até ele acordar.

— Rodolfo? — perguntei.

Ele olhou com um misto de raiva e espanto para nós dois.

— Quem são vocês? O que querem?

— Você ligou pra mim ontem de manhã, só vim tirar satisfação sobre isso — falei. Ele me encarava com um olhar preocupado, mas ainda determinado — Nós sabemos que você matou José Alento e que incriminou aquele RECT, e também que a Electronic Giants está envolvida nisso. Agora queremos que você nos diga exatamente o que aconteceu e porque.

Eu peguei minha arma de choque e apontei pra Rodolfo, querendo intimidá-lo, mas no lugar disso ele começou a rir.

— Eu sei que uma arma de choque portada por um civil não pode ter potência suficiente pra matar — ele falou.

— Eu garanto que pode machucar bastante.

— Não o suficiente pra eu falar alguma coisa.

Violeta deu um chute no peito de Rodolfo que o jogou longe, me deixando assustado por um momento. Ele ficou caído em uma posição bem desconfortável, arfando. Violeta se aproximou e segurou o rosto dele.

— O RECT que você matou era meu companheiro. A minha vontade agora é arrancar a sua cabeça, a única coisa que me impede de fazer isso é querer saber o que aconteceu. Então é bom você começar a falar, porque se eu achar que você é inútil, não vou ter nenhum motivo pra deixar a sua cabeça onde está.

Aquela ameaça pareceu surtir mais efeito do que a minha, mas ele ainda estava relutante.

— Por que você se importa com aquele pedaço de carne e metal? Era só um RECT — ele falou com a voz vacilante.

Ela deu tapa na cara dele que o fez cuspir sangue, em seguida tirou seu chapéu. Rodolfo embranqueceu quando viu as partes metálicas em sua cabeça. Ele tentou balbuciar alguma coisa, mas o som estava preso em sua garganta.

— Sim, eu sou um pedaço de carne e metal trazido de volta à vida, mas eu sigo minhas próprias ordens, e a ordem que quero seguir agora é a de acabar com você se não começar a falar algo que faça sentido.

Toda a valentia de Rodolfo havia desaparecido. Ele respirou fundo e começou a falar.

— Jorge veio falar comigo, disse que tinha um trabalho pra mim. Ele trabalhou comigo na fábrica da Electronic Giants, mas subiu de cargo enquanto eu fui mandado embora, faz uns dois anos já. Ele disse que seus chefes queriam que alguém fosse eliminado e que um RECT deveria ser o culpado. Eles queriam aproveitar que o RECT tinha sumido e dizer que foi um defeito do produto que causou a morte. Ele me deu uma luva pra executar o trabalho, e informações sobre a vítima e sobre o RECT, ele andava pela mesma rua todos os dias, foi fácil localizá-lo e armar tudo. Eu segui o José e o matei, e marquei aquele símbolo em seu pescoço pra tornar mais evidente o motivo da morte. Depois encontrei o RECT onde falaram que o encontraria, o matei e fiz parecer que era um suicídio. Jorge mandou eu ligar pra você e te dar essa dica. Depois da sua visita à fábrica, eles acharam que você era uma boa escolha pra noticiar o que aconteceu. Eu fiz o que eles mandaram e recebi a grana. Você vir atrás de mim não estava nos planos.

— Quem queria o José morto? — perguntei.

— Eu… — ele estava gaguejando com medo de falar, mas um olhar firme de Violeta fez ele confessar. — Jorge tem cargo muito alto na empresa. Os únicos chefes dele são os próprios donos.

Então Mary e Daniel eram os responsáveis. Todo aquele papinho de José ser o mais valoroso da equipe e eles mesmo orquestraram sua morte.

— O que mais você sabe?

— Isso é tudo, eu juro. — sua fala parecia sincera.

Puxei Violeta para um canto, ela parecia menos tensa.

— Está tudo bem? — perguntei.

— Sim, sim, está. — ela parecia estar relaxando agora.

— O que foi aquilo?

Ela me encarou com um olhar preocupado.

— Eu não sei… Eu fiquei com raiva, e acabei soltando tudo nele. Mas… — ela olhou pra Rodolfo. — Eu não quero realmente matar ele… Eu quero que eles todos paguem pelo que fizeram com Armando, mas não quero matar ninguém…

Eu segurei seu rosto, tentando acalmá-la.

— Nós conseguimos, Violeta. Sabemos o que aconteceu e podemos fazer os responsáveis serem presos por isso. Eu vou entregar ele pra polícia, fazê-lo confessar e deixar que eles prendam os responsáveis. E vou publicar a história e fazer com que todos saibam o que realmente aconteceu, e a injustiça que Armando sofreu. Tudo bem?

Ela concordou com a cabeça. Fui até Rodolfo e me agachei para falar com ele, tentando soar o mais intimidador possível.

— A minha amiga ali tá querendo te levar pra parte mais remota da cidade e te fazer pagar pelo que fez com o amigo dela. Quer que eu te deixe com ela? — ele sacudiu a cabeça, assustado — Nesse caso, você vai ter que vir comigo até a delegacia e confessar tudo o que aconteceu.

Rodolfo concordou com meus termos, ele estava assustado demais com Violeta, acreditando que ela era um tipo de zumbi ou algo assim, foi fácil arrastá-lo dali até a delegacia. Já estava escuro quando chegamos, e levou umas três horas até eu ser liberado de lá, tempo em que dei meu depoimento e expliquei o que havia descoberto, omitindo algumas partes, e em que vi Rodolfo se confessar e apresentar a caixa com a luva elétrica e o dinheiro. Com as novas evidências em mãos, a polícia reabriria o caso e investigaria a Electronic Giants. O policial que me atendeu aceitou me contatar com o resultado da investigação, era uma troca justa pela ajuda que dei a eles.

Já passava das dez quando cheguei em casa. Arranjei alguma coisa pra comer e virei a noite escrevendo a matéria para o jornal, falando sobre todo o desenrolar do caso e apontando os donos da empresa como os principais suspeitos do assassinato de seu sócio. Também escrevi sobre Armando e sobre como os RECT poderiam desenvolver uma nova consciência, mas omiti Violeta, a pedido dela própria, no lugar disso a citei como uma fonte anônima. Eu estava exausto quando terminei, mas tinha uma boa história para entregar ao meu chefe no dia seguinte.


9 de março de 1926


Finalmente chegamos ao fim dessa trama. Cheguei bem cedo no jornal e entreguei minha matéria ao meu chefe. Apesar de fingir fazer pouco caso, minha notícia saiu na primeira página do jornal daquela manhã. Mas pra minha frustração, toda a parte sobre Armando e os RECT havia sido cortada. Fui tirar satisfação com meu chefe. Esperei que ele gritasse comigo, mas no lugar disso ele me entregou um envelope.

— É uma bonificação pelo trabalho bem feito — ele falou. — A RECT Company não gostou muito do que você escreveu sobre os RECT, mas tenho certeza de que isso não será um problema.

Eu encarei aquele envelope com raiva, sem acreditar que ele estivesse mesmo sendo comprado por uma empresa e quisesse fazer o mesmo comigo. Eu deixei o escritório com raiva, ainda encarando o envelope sem saber o que deveria fazer, quando senti uma mão em meu ombro.

— Isso é horrível — falou Lúcia. —, mas não há nada que possamos fazer agora. Aceite o dinheiro e evite entrar em problemas, você não tem força pra enfrentá-los ainda, mas um dia talvez a gente consiga.

Ela me deixou ali, refletindo sobre essas palavras. Realmente se eu tentasse peitar meu chefe, eu ia estar jogando minha carreira no lixo, mas se eu continuasse fazendo bons trabalhos como aquele, poderia conseguir um nome respeitado que me permitiria enfrentá-lo. Eu aceitaria aquele dinheiro, por enquanto. E não posso negar que ele me foi útil, dados os gastos que tive nessa investigação.

Eu falei com Violeta por telefone sobre tudo o que aconteceu, e ofereci uma parte do dinheiro, mas ela recusou. Levaria um tempo até que eu voltasse a vê-la. A investigação da polícia teve resultado e, como prometido, fui o primeiro a saber. Ao que parecia, José havia dado uma rasteira nos amigos e comprado a maior parte das ações para si, tornando-se o principal cabeça por trás das decisões da empresa. Um desejo de vingança e de reassumir o controle fez os outros armarem toda essa trama. No fim, nenhum dos três prestava.

Todas as matérias que se seguiram sobre a investigação e julgamento levaram meu nome, era ali que minha fama começava. Se você nunca ouviu falar da Electronic Giants, agora sabe o porque, sem os três para comandar a empresa faliu em poucos anos.

E aqui termina meu primeiro conto, e talvez o mais importante, já que foi aqui que abri meus olhos para a realidade. Mas esse é só o começo, ainda há muito o que ser contado.

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