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Luiz Victor Aragon

Neve Negra



Muitos vão dizer que só existe uma cor branca, mas quando você vive muito tempo em meio a neve você passa a distinguir suas diferentes tonalidades. Você sabe reconhecer os tons deixados por uma nevasca ou pela chegada da primavera, e você sabe que algo está muito errado quando vê os tons enegrecidos da neve manchada de fuligem.

Bri estava ajoelhada, observando um punhado de neve negra que segurava em sua mão. Seu corpo tremia, mas não era o frio, lembranças cruzavam sua mente, lembranças da última vez que havia visto essa neve negra, quando as máquinas chegaram e quando sua mãe foi levada para ser abatida como um animal selvagem.

O punho da garota se fechou, espalhando neve e fuligem, e ela se levantou encarando o horizonte, o medo e tristeza davam lugar a raiva. Era possível sentir o fraco cheiro de fumaça vindo da direção de sua casa. Ela havia acabado de sair da floresta, a sua casa ainda estava há alguns quilômetro de distância, mas se corresse poderia chegar a tempo. Bri mordeu o lábio, hesitante, lembrando da ordem de seu pai para que corresse o mais longe que pudesse caso isso acontecesse um dia, mas essa não era uma ordem que a menina pudesse cumprir.

A garota puxou o capuz de sua capa vermelha, escondeu os fios loiros avermelhados que escapavam do capuz, ajeitou o arco que carregava nas costas, e correu, correu mais rápido do que qualquer ser humano normal conseguiria, e em alguns minutos avistou sua casa. O céu se tingia de vermelho conforme o sol se punha, e o frio aumentava com a chegada da noite. Bri diminuiu o passo e se aproximou cautelosamente, respirando um pouco mais aliviada por ver sua casa ainda de pé. Mas o alívio durou pouco, as enormes manchas negras na neve mostravam o quão próximo as máquinas haviam chegado, e conforme andava Bri pode ver rastros indo até a entrada de casa.

O campo branco se estendia por vários quilômetros, era preciso andar por mais de uma hora até chegar na floresta ou na estrada que levava até a cidade. A casa de Bri ficava literalmente no meio do nada. A princípio era um bom lugar para viver, totalmente isolado, ninguém em sã consciência andaria por aquela região. Mas uma vez que os achassem não havia lugar onde se esconder. Bri mordeu o lábio novamente, se amaldiçoando por ter saído com sua capa vermelha, vestida desse jeito ela era um alvo claro para qualquer um que vigiasse o lugar.

A garota pegou seu arco e preparou uma flecha, andando devagar até a entrada de casa. A porta estava arrombada. Bri adentrou a sala o mais silenciosamente possível, mas com o coração na boca. O interior estava todo revirado, havia gotas de sangue no chão, mas a garota não viu nenhum sinal de vida lá dentro. Ela olhou para o velho sofá da sala, entendendo porque seu pai a fizera dormir nele por tantos anos e ficado com o único quarto da casa pra ele. Qualquer um que entrasse pensaria que ele vivia sozinho ali, não havia porque esperar que uma jovem de 17 anos de olhos dourados fosse aparecer horas depois procurando desesperadamente seu pai. A menina relaxou um pouco o arco e caminhou até o quarto, mas parou no meio do caminho ao escutar um barulho. Parecia uma espécie de ronronar, grave e contínuo, vindo da cozinha. Ela puxou a corda do arco, andando lentamente na direção de onde o som parecia vir.

A parede explodiu e uma figura metálica saltou pra cima de Bri. Antes que ela pudesse disparar a flecha a figura lhe acertou um tapa que jogou o arco longe, em seguida um punho de ferro atingiu seu peito, jogando-a para o outro lado da sala. A garota caiu arfando no chão, mas ignorou a dor e tentou se levantar o mais rápido possível. A sua frente havia uma armadura de dois metros de altura, encarando-a através de um capacete assustador. Fumaça saía de suas costas e era possível escutar o som de engrenagens se movendo lá dentro. Enquanto a figura metálica puxava um enorme rifle das costas, Bri correu o mais rápido que pode para fora de casa. Ela escutou um estampido e pulou para o lado, mas mesmo se movendo rápido a bala atravessou seu ombro, fazendo-a rodopiar no ar e cair de costas no chão, tingindo a neve de vermelho.

A garota tentou se levantar, mas um segundo tiro atingiu sua perna. Ela se contorceu no chão, gritando de dor, e se virou, ofegante, para ver seu algoz recarregar o rifle e mirar em sua cabeça. Estava acabado agora. Bri inspirava lentamente, aguardando o inevitável, quando uma sombra saltou nas costas de seu inimigo. Ela moveu um braço pelas suas pernas metálicas, colocando-o de joelhos, e usou sua força para derrubá-lo por completo no chão. A garota observou atônita um ser felino enfiando suas garras pelas frestas da armadura e arrancando com força suas partes metálicas. Um pequeno motor a vapor voou para longe, engrenagens manchadas de vermelho se espalharam pelo chão, e sangue manchou a neve quando as garras da criatura penetraram mais fundo no alvo. Quem quer que estivesse dentro daquela armadura não estava mais vivo.

O felino se levantou sobre duas pernas e caminhou até bri. O animal era forte, mas não muito grande, possuía uma pelagem avermelhada e vestia roupas de lã acinzentadas. Enquanto andava seu corpo ia se deformando, e logo não era um felino bípede parado diante de Bri, mas sim uma jovem mulher de pele morena e cabelos negros não muito longos. Mas o que chamou a atenção da garota foram os olhos, eles eram dourados como os seus.

— Você é um… — a fala da garota foi interrompida pela mulher, que puxou uma faca de seu cinto e enfiou na perna de Bri, extraindo a bala junto de um grito de dor.

A mulher observou o ombro ferido, e, vendo que a bala o havia atravessa, se levantou e estendeu a mão para a menina.

— Consegue ficar de pé?

Bri encarou a mão dela por alguns segundos, hesitante, antes de aceitar a ajuda e se por de pé.

— Consigo — respondeu a menina.

Seu ombro e perna doíam bastante, e ela ainda mancaria por um tempo, mas em algumas horas seus ferimentos provavelmente já estariam curados.

— Bom. O resto dos soldados virá pra cá quando virem que seu companheiro não retornou. Pegue rápido o que precisar, nós precisamos sair daqui logo.

A mulher se afastou de Bri, contornando a casa como se procurasse alguma coisa, enquanto a garota adentrava pela última vez o seu lar. Ela podia não fazer ideia do que tinha acabado de acontecer, mas sabia que nesse momento não tinha muita escolha além de seguir aquela estranha. A menina pegou seu arco do chão, um par de facas de caça que seu pai mantinha amoladas na cozinha, e deu uma última olhada naquele lugar que por oito anos a havia abrigado, apertando com força sua capa. Ela deu as costas para sua antiga vida e saiu pela porta. O céu já estava escurecendo, e a estranha que salvara sua vida a esperava com uma mochila no ombro.

— Meu nome é Robin, a propósito. E sim, eu sou como você. Agora vamos sair rápido daqui.

Robin saiu andando na direção da floresta, e a menina seguiu atrás.

— Eu achei que não houvesse mais ninguém, que todos já tivessem sido extintos — comentou Bri.

— Estamos mesmo perto disso, mas ainda há pelo menos uma centena de nós vivos. — Robin falava mantendo a atenção no caminho adiante. — Não estamos mais dispersos pelo continente. Uma mulher, Amberly, passou os últimos anos reunindo os sobreviventes e organizando uma resistência pra libertar nosso povo.

Os olhos da garota arregalaram ao escutar o nome.

— Amberly… Esse era o nome da minha mãe — ela disse.

Robin virou o rosto para a menina, sorrindo.

— Por que acha que eu estou aqui, Bri?



Um conto de Luiz Victor Aragon


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