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Luiz Victor Aragon

A garota que caiu do céu



O guerreiro cavalga desesperado pelo bosque escuro. Seu cavalo já está no limite, mas ele não pode arriscar ir mais devagar. Em uma bolsa pendurada na sela jaz o maior tesouro que alguém poderia conquistar. Mas esse tesouro não terá serventia nenhuma se ele não conseguir deixar o bosque, tarefa que se mostra cada vez mais difícil. É possível sentir o hálito fétido da besta atrás de si, cada vez mais perto. A morte se aproxima.

A luz surge entre as árvores, indicando o fim da mata. Um sorriso cruza os lábios do guerreiro e ele incita o cavalo a correr mais rápido. Mas já é tarde demais. A besta atinge a perna do cavalo, derrubando-o. Animal e cavaleiro rolam pelo chão. O homem se ajoelha aturdido, mas recobra os sentidos a tempo de erguer seu escudo e se defender das garras da fera. Meio caído ele brande sua espada e fere a besta, que recua. Ele se coloca de pé, espada em punho, e parte...

—WILL!!! Cadê você, seu moleque imprestável?!

O garoto tirou os olhos do caderno e encarou a porta assustado. Ele podia ouvir o ranger da escada. Não seria bom que o Sr. Bornes o pegasse escrevendo de novo. Ele escondeu o caderno e a caneta embaixo da cama e se colocou de pé bem a tempo. A porta foi escancarada e um velho corpulento passou por ela, esbravejando.

— O que você está fazendo aqui, garoto?! Os homens já estão lá em cima dando duro, e você aqui nessa moleza?!

— Desculpe, senhor. — o garoto se encolheu diante da ira do homem.

— Você não estava sonhando acordado de novo, estava?! — o velho se aproximava enquanto falava, aumentando o pavor de Will.

—Não, senhor.

— Você sabe o que eu disse que faria se o pegasse escrevendo novamente, não sabe?!

— Sim, senhor.

—Então o que está fazendo aqui ainda?! Vá logo ao trabalho!

Bornes deu um tapa na cabeça de Will, que saiu correndo do quarto. Ele cruzou rápido corredor, sentindo o chão balançar sob seus pés, e subiu as escadas para o convés. Lá fora um grupo de homens jogava redes ao mar e as puxavam de volta cheias de peixes, que eram despejados no chão do convés, enquanto outro grupo enchiam com esses peixes barris que eram levados por um terceiro grupo para o porão.

Will se juntou ao terceiro grupo, trabalhando a manhã toda e parte da tarde, com direito a uma breve pausa para comer. Quando o porão já estava lotado, ele foi encarregado de varrer todo o navio. Ao anoitecer estava exausto, mas teria que ficar de vigília na gávea, uma punição por ter enrolado para começar a trabalhar. Não era algo que o incomodaria normalmente, a paz que o lugar fornecia era perfeito para ficar sonhando com aventuras e uma vida que nunca seria sua. Mas o cansaço tornava difícil se concentrar.

Após alguns minutos admirando a vastidão negra do mar, Will se recostou na borda mirando as estrelas, lutando para manter os olhos abertos. As coisas só iriam piorar se o pegassem dormindo em serviço. Sua luta parecia ser em vão quando um vulto escuro passou rápido no céu acima, chamando a atenção do garoto. Will levantou num pulo e correu para a outra borda, procurando o vulto. Ele viu ao longe algo caindo do céu, mas não conseguia identificar o que era. Pegou então sua luneta e viu claramente uma figura humana tocando a água, não muito longe de onde estavam.

— Homem ao mar! Homem ao mar! — gritou, chamando a atenção dos poucos homens que ainda estavam no convés.

— Que gritaria é essa?! — gritou o capitão.

— Há alguém caído no mar ali na frente, senhor!

O capitão olhou na direção apontada com sua luneta, enxergando o vulto que boiava na água. Ele gritou ordens aos homens enquanto retornava para o timão, guiando o navio até a figura caída. Os marujos desceram um barco e remaram até ela, uma jovem de vestido branco que boiava desacordada. Eles a puxaram para dentro do barco e remaram de volta, sendo içados para o convés.

Uma turba rodeou a jovem enquanto ela era deitada no chão. Will se espremeu entre eles e se ajoelhou ao lado dela, maravilhado com o que via. A garota não devia ser muito mais velha que ele. Ela possuía longos cabelos, escuros como a noite, sua pele era extremamente pálida, seu vestido possuía um tom prateado. Ela tremia de frio.

O capitão abriu caminho gritando e empurrou Will para longe, o médico do navio o acompanhava. Ele examinou rapidamente a jovem e a carregou para os quartos inferiores. Will tentou segui-lo, mas foi barrado pelo capitão.

— Todos vocês, molengas, de volta ao trabalho! — esbravejou.

A turba de curiosos rapidamente se dispersou, conforme o navio ia retomando à sua atividade noturna normal. Will teve que mais uma vez subir até a gávea e vigiar o mar. Dessa vez o sono não o atrapalhou, estava inquieto demais para que o pensamento de dormir cruzasse sua mente. Já passava da meia noite quando vieram substituí-lo.

Will seguiu em direção ao dormitório, mas se esgueirou para a ala médica. Ele se aproveitou que o velho dormia e foi até a cama onde a garota repousava. Minutos se passaram enquanto ele a observava dormir, maravilhado e sem saber exatamente o que fazer. Will nunca havia visto uma garota tão linda antes, mas o que realmente prendia sua atenção era a história que ela devia carregar, afinal, aquela garota havia caído do céu. Ele foi o único que viu e ninguém mais deu atenção à sua história, mas ele sabia que era verdade, ele tinha certeza de ter visto alguma coisa carregando a menina e deixando-a cair nas águas do mar.

A mão de Will lentamente se aproximou do rosto da garota, tocando sua pele macia, antes de ser agarrada com violência. A outra mão da garota segurou o pescoço de Will e puxou seu rosto para perto dela.

— Quem é você? Que lugar é esse? Por que eu estou aqui? — falou a garota, agora bem acordada e alerta, olhando com determinação para Will.

O garoto precisou de alguns segundos para se recuperar do susto.

— É... Eu sou Will. Esse é um navio pesqueiro... E nós tiramos você do mar. — disse tentando não gaguejar.

A garota ainda encarou Will por alguns segundos, antes de soltá-lo e relaxar na cama. O garoto se afastou um pouco, tossindo.

— O que aconteceu? — perguntou calmamente a menina.

Will a observou incrédulo, tentando entender com quem estava lidando.

— Eu vi alguma coisa passar voando e te largar no mar. Alertei o resto do navio e eles foram até você e te resgataram. — disse o garoto.

— Entendo.

Ele ficou esperando que ela continuasse, mas a garota se manteve muda encarando o teto.

— Quem é você? — indagou Will, impaciente.

— Me chamo Ângela. — respondeu a menina.

— De onde você é?

— Do País do Céu.

Vendo a cara de confusão no rosto de Will, um leve sorriso cruzou os lábios de Ângela.

— O que está havendo?! — gritou o médico, agora acordado, logo atrás do garoto.

— Hã... Ela acordou... — respondeu Will, se encolhendo.

O velho fuzilou Will com uma fúria avassaladora e o puxou pelo braço para fora do quarto, trancando a porta logo em seguida. O garoto ainda tentou escutar o que se passava lá dentro, mas tudo o que conseguiu captar foram sussurros. Derrotado, ele seguiu para o dormitório e se jogou na cama, deixando que o sono o levasse. Em nenhum momento daquela noite Ângela deixou seus pensamentos, nem as palavras ditas por ela: "País do céu".

Will passou a manhã seguinte esfregando o convés, cansado e frustrado por não poder ver Ângela. Em poucas horas o navio estava de volta ao porto, de volta à sua vila, à sua casa, mas ele ainda precisaria ajudar a descarregar os barris de peixe antes de ser liberado. Enquanto trabalhava, ele viu Ângela ser levada pelo capitão e pelo prefeito, eles provavelmente discutiriam sobre o que fazer com a garota. Por maior que fosse a vontade de sair correndo atrás deles, Will não podia largar o trabalho. Bom, ele sabia onde ela estaria, ele poderia ir atrás dela quando terminasse. Engolindo seus pensamentos, ele voltou a atenção para a tarefa.

Já haviam se passado quase duas horas quando o Sr. Bornes finalmente o dispensou do serviço, entregando a contragosto seu pagamento. Will estava faminto, mas ele não poderia ir para a casa sem antes encontrar aquela misteriosa garota e conhecer a sua história. Ele correu até a prefeitura e, olhando pela janela, pode constatar que estava certo. Ângela encontrava-se sentada sozinha em uma salinha perto da sala do prefeito, esperando enquanto algumas pessoas discutiam seu destino.

O garoto entrou na prefeitura e se esgueirou até a sala onde Ângela estava, entrando sem que ninguém percebesse. A garota levantou os olhos para a porta, surpresa com a visita. Will deu alguns passos, meio sem jeito, e acenou para ela.

— Oi… — apesar da vontade de encontrar a garota, em nenhum momento ele havia pensado no que poderia dizer.

— Olá. — Ângela mantinha uma expressão curiosa em seu rosto.

Após um minuto constrangedor em que ninguém sabia exatamente o que dizer, Will perguntou:

— Então… O que vai acontecer com você?

— Eu não sei, eles não parecem saber muito o que estão fazendo. Eles dizem que querem me ajudar, mas não acreditam na minha história.

— É… De onde você disse mesmo que é?

— Do País do Céu.

— Certo… Onde fica? — Will ainda não estava engolindo essa história.

— Ora, no céu. — a garota falava como se fosse algo óbvio, como se fosse conhecimento de todos que houvesse um país flutuando entre as nuvens, por mais absurdo que fosse.

— Não tem como existir um país no céu. — Will respondeu incrédulo.

— E por que não?

— Ora, é um absurdo! Todos sabem que não tem como haver um país flutuando por aí, o que nós vemos em terra é tudo o que existe.

— Está me dizendo que sua mente é tão limitada que não pode aceitar que existam coisas além do que você conhece, que não pode haver um mundo de maravilhas só esperando para serem descobertas?

— Bem, não, mas…

Ele queria acreditar no que aquela a garota estava falando, queria muito. Will sempre sonhou com histórias fantásticas, mas todos a sua volta sempre mostraram que aquilo era somente isso, sonhos. Poderia mesmo existir um mundo de maravilhas só esperando por ele?

— Então…? — inquiriu a garota.

— Como você caiu do céu? — perguntou, querendo entender como aquilo poderia ser.

— Eu estava fugindo. Há algumas pessoas que querem o meu mal, elas foram atrás de mim. Eu consegui fugir com o Tiko, mas elas me seguiram. Tiko deve ter me largado pra tentar despistá-los. Eu não sei, eu apaguei e não lembro exatamente o que aconteceu…

— Tiko?

— É um pássaro que eu tenho, a gente usa eles pra nos movermos pelo céu.

— Tá… Por que eles te perseguiam?

— Vamos dizer que houveram algumas mudanças por lá, e eu sou considerada uma ameaça para elas.

Havia muita coisa que Will queria saber sobre esse suposto “País do Céu”, mas ele ainda precisava processar tudo o que ouviu.

— O que você vai fazer agora? — decidiu perguntar.

— Eu preciso voltar pro céu e resolver essas questões. Sabe onde tem um morro ou desfiladeiro por aqui? É mais fácil chamar Tiko de um lugar alto.

— Sim, seguindo a trilha que sai da praia você chega num mirante.

— Bom. Obrigada… — ela ficou esperando que Will dissesse alguma coisa, e ele se deu conta de que não havia se apresentado para a garota.

— Will.

— Obrigada, Will. — um sorriso tão tenro surgiu em seus lábios que deixou o garoto sem jeito.

— Me diz uma coisa. Isso tudo o que você tá falando é mesmo verdade? Existe mesmo um país no céu? — ele perguntou.

— Claro. Gostaria de conhecê-lo?

— Eu posso?!

— Uhum. Eu posso te levar comigo. O que me diz?

Os olhos de Will brilharam diante dessa possibilidade, mas ele ainda não estava certo de que poderia fazer isso.

— Eu não sei… Não posso deixar essa vila.

— Por que não?

— Minha vida está aqui, eu não posso abandonar tudo, abandonar minha mãe.

Era possível escutar vozes no lado de fora da porta, indicando que logo eles entrariam.

— Droga. Eu preciso ir. — falou Will, frustrado.

— Se mudar de ideia, eu estarei nesse mirante ao pôr do sol para chamar Tiko. É só me encontrar lá.

Will pulou apressado pela janela, mal tendo tempo de acenar para Ângela. Assim que saiu escutou as pessoas entrando na sala. Ele ficou um tempo ouvindo do lado de fora, mas como não diziam nada de interessante decidiu ir logo pra casa.

Durante todo o caminho sua cabeça fervilhava com o que tinha ouvido. Seria mesmo possível que existisse algo além daquela cidade e da vida que ele conhecia, algo tão maravilhoso como o País do Céu? Will queria muito mesmo que fosse verdade, mas ainda tinha dúvidas de como lidar com isso.

Já passava das 13 horas quando Will finalmente chegou em casa.

— Por que demorou tanto, garoto?! — gritou sua mãe assim que ele cruzou a porta de casa.

— Desculpa, mas você não vai acreditar no que aconteceu.

Enquanto ajudava sua mãe com o almoço, Will contou tudo a ela. Sobre como viu Ângela caindo do céu, de como ela foi resgatada e tudo o que ela contou a ele.

— E você acreditou mesmo nessas bobagens? — questionou sua mãe, parecendo achar graça e estar decepcionada com o filho — Escuta, garoto. Essa casa, essa vila, o navio onde trabalha, essa vida que possuímos, não existe nada além disso. Pare de sonhar com coisas que não existem e coloca sua cabeça no que realmente importa. Quanto mais cedo aceitar que essa é a sua vida melhor.

Essas palavras cortaram seu coração como gelo. É claro que não poderia existir algo como um país no céu. Um lugar onde as pessoas voam em pássaros gigantes, onde já se viu isso? Não, sua mãe estava certa, já era hora dele parar de sonhar e focar na realidade.

Ele passou o resto do dia calado, concentrado em seus afazeres, sem ousar pensar em qualquer coisa além de suas obrigações. Já eram quase 18 horas quando se largou na cama, exausto. Ele olhou pela janela e viu o céu começar a se avermelhar. O sol já estava se pondo, e com ele iam todos os seus sonhos. Will fechou os olhos, esperando cair no sono, mas após alguns segundo os abriu novamente, com uma fúria e paixão nunca antes vista enchendo seu coração. Como ele poderia desistir de tudo? O que ele tinha ali não era uma vida, vida era o que estava em seus sonhos, e ele jamais poderia abandoná-los.

Will pulou da cama e correu pra fora de casa. Escutou os gritos de sua mãe, mas os ignorou. Ele correu por vários minutos até alcançar o mirante totalmente sem fôlego. O céu já estava quase negro, mas ela ainda estava lá. Ângela estava em pé na beirada do mirante, olhando sua chegada com um sorriso no rosto.

— Está atrasado.

— Eu sei… Desculpa… — Will lutava pra falar enquanto o ar enchia novamente seus pulmões.

— Sorte sua que sou paciente.

Ângela puxou de dentro do vestido uma espécie de flautinha que estava presa em seu pescoço por um cordão. Ela a soprou e um som melodioso preencheu o ar. Após alguns minutos de espera, que deixaram Will ansioso, eles escutaram um grasnado e o som de asas batendo. Ele se levantou, olhando abismado para o enorme pássaro vermelho que pousava na beirada do mirante.

A garota correu até ele e o abraçou, fazendo carinho em sua cabeça enquanto ele grasnava alegremente. Ela subiu em suas costas e estendeu a mão para Will. O garoto hesitou por um momento, ainda maravilhado com o que via, mas respirou fundo e andou até eles, segurou a mão de Ângela e subiu nas costas do pássaro.

— Segura firme. — alertou a garota.

Tiko saltou do mirante e começou a bater suas asas, voando em direção ao horizonte e além das nuvens. Ele carregava em suas costas uma garota que não via a hora de voltar pra casa e um garoto que não via a hora de encontrar a sua.


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